A convivência familiar e as horas extras trabalhistas
Para nossa Constituição Federal, a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado (artigo 226).
Assim, há a preocupação, por exemplo, com a primeira infância, considerada como o período que abrange os primeiros 6 anos completos de vida da criança - período em que estudos apontam que seja a fase em que se desenvolve o caráter da pessoa -, por meio da Lei nº 13.257/2016, que prevê a formulação e implementação de políticas públicas voltadas para estas crianças que estão nesta “primeira infância”.
A referida lei trouxe, dentre outras, preocupações com a efetividade do direito à saúde, à nutrição, à educação infantil, e a maior convivência com os pais, com a ampliação das licenças maternidade e paternidade, além de dar prioridade para prisão domiciliar das gestantes e pais que possuam filhos menores de 12 anos e são os únicos guardiãos; trazendo importantes modificações à CLT – Consolidação das Leis do Trabalho e o CPP – Código de Processo Penal.
Sendo, o trabalho, um direito social da pessoa, garantido pela Constituição Federal (artigo 6º), que visa a melhoria de sua condição social, o mesmo não pode ser de maneira excessiva comprometendo a saúde mental e física do trabalhador, bem como o convívio familiar, devendo os seus direitos serem respeitados.
Conforme esclarece a Dra. Tathyana Guitton, em recente decisão, proferida por Magistrado do TRT 3ª Região, uma empresa foi condenada ao pagamento de horas extras tendo em vista que o funcionário era acionado por seu superior hierárquico via aplicativo de celular WhatsApp fora de seu horário de trabalho.
Vejamos dispositivo da sentença à respeito:
“6. HORAS EXTRAS E REFLEXOS - TEMPO À DISPOSIÇÃO
Pleiteia o Reclamante a condenação da Reclamada ao pagamento de horas extras (e reflexos), em decorrência do fato de “ter seu intervalo intrajornada diariamente interrompido e pelas ordens recebidas fora do expediente de trabalho”.
A Empresa-Ré, por sua vez, sustenta que toda a jornada cumprida pelo Autor era devidamente registrada nos controles de ponto. Acrescenta que as horas extras realizadas foram devidamente quitadas ou compensadas. Assevera, ainda, que o Obreiro sempre usufruiu regularmente do intervalo para refeição e descanso.
Infere-se dos cartões de ponto apresentados pela Reclamada (ID. 39dc040) que, no período contratual, o Reclamante cumpriu a jornada de trabalho das 08:00 às 17:20 horas, com intervalo das 13:00 às 15:00 horas.
Por outro lado, depreende-se das conversas entabuladas entre o Autor e seu superior hierárquico, por meio do aplicativo de celular Whatsapp (ID. 3e5ae94 e seguintes), que o Obreiro era convocado para o labor durante o intervalo intrajornada, bem como antes do início ou após o encerramento da jornada, sendo que referidos períodos não eram registrados nos controles de jornada.
Portanto, à luz do disposto no art. 4º da CLT, com redação vigente à época do contrato de trabalho, a partir do momento em que o Autor era acionado, via Whatsapp, durante o intervalo intrajornada ou fora do horário normal de trabalho, deve ser considerado como de efetiva prestação de serviços, integrando a jornada de trabalho para todos os fins de direito.
Assim sendo, defere-se ao Reclamante o pagamento de 03 (três) horas extras diárias, acrescidas do adicional de 50%, durante todo o período contratual, com reflexos sobre aviso prévio, 13º salário, férias + 1/3 e FGTS + 40%, conforme se apurar em liquidação, observados os limites do pedido.
Na apuração, deverá ser observada a remuneração efetivamente recebida, nos termos da Súmula 264 do TST, os dias efetivamente trabalhados (excetuam-se férias, licenças, períodos de afastamento etc.) e o divisor 220.”(Processo nº.: 0011369-42.2017.5.03.01.45 / Juíza Daniela Torres Conceição / TRT 3ª Região / 08/11/2018)
O que se conclui da decisão acima é que, sendo o empregado acionado por qualquer meio telemático (aplicativos de celular, e-mails e mensagens de textos), é considerado que o mesmo estava prestando serviço, ou seja, o tempo desprendido pelo trabalhador para cumprir o que lhe foi solicitado deve ser integrado a sua jornada de trabalho.
Podemos fundamentar o disposto na decisão apontada no artigo 6º da CLT que afirma:
“Art. 6º. Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”
Nesse contexto, cabe esclarecer o que seria efetivamente considerado hora extra trabalhada pelo funcionário.
A jurisprudência de nossos Tribunais do Trabalho vem se posicionando no sentido de que a mera troca de informações entre funcionários e superiores hierárquicos após o término do expediente, desde que seja realmente só informações e mensagens com cunho de entretenimento, não configura trabalho de forma extra.
Entretanto, em situações em que um superior hierárquico solicite que o funcionário realize uma função que normalmente o mesmo realizaria em seu horário de trabalho, de forma que esse funcionário não tenha opção de dizer que não irá realizar naquele momento ou que somente irá realizar no dia seguinte, tem-se que esse funcionário está laborando fora de seu horário de trabalho e, dessa forma, essas horas de trabalho extra deverão ser contabilizadas como horas adicionais.
Tal entendimento possui fundamento no artigo 244, §2º, da CLT, que dispõe sobre o regime de sobreaviso, caracterizado quando o empregado fica aguardando ordens de seus superiores fora do seu local de trabalho, vejamos:
“Art. 244. As estradas de ferro poderão ter empregados extranumerários, de sobre-aviso e de prontidão, para executarem serviços imprevistos ou para substituições de outros empregados que faltem à escala organizada.
(…)
§ 2º Considera-se de “sobre-aviso” o empregado efetivo, que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. Cada escala de “sobre-aviso” será, no máximo, de vinte e quatro horas, As horas de “sobre-aviso”, para todos os efeitos, serão contadas à razão de 1/3 (um terço) do salário normal.”
Vale ressaltar que, o Tribunal Superior do Trabalho – TST, acrescentou à sua Súmula 428 o inciso II, que dispõe:
“SÚMULA N.º 428 - SOBREAVISO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 244, § 2º DA CLT
(…)
II - Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso.”
Assim, todas as horas trabalhadas que ultrapassarem o limite legal de 8 horas diárias e 44 horas semanais, devem ser pagas de forma extra ou compensadas, conforme previsto na legislação trabalhista:
“Art. 58. A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.”
“Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.
§ 1º A remuneração da hora extra será, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) superior à da hora normal.
(…)
§ 6º É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês.”
Ressalta-se, ainda, que, para fazer jus ao recebimento das horas extras nos moldes supracitados, deve haver comportamento reiterado da empresa (habitualidade), não podendo ser uma ação isolada.
Nesse sentido, a Reforma Trabalhista regulamentou no artigo 223-A e seguintes da CLT o dano extrapatrimonial, um grande avanço na aérea de dano moral, tendo em vista que a legislação trabalhista não abarcava danos dessa espécie.
Vejamos o artigo 223-A in verbis:
“‘Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.”
Assim, o dano extrapatrimonial acontece quando há uma lesão que atinge os bens imateriais da pessoa, como sua honra, seu nome, sua saúde, seu lazer, etc. Tais bens juridicamente tutelados são elencados de forma exemplificativa no artigo 223-C, da CLT.
Em decisão da 2ª Câmara do TRT-15, (Processo 0000960-26.2014.5.15.0097 - TRT15), foi proferido voto favorável à condenação de uma empresa, a pagar indenização com base em danos extrapatrimoniais, a um empregado submetido a uma jornada de trabalho que extrapolava o limite diário de forma exorbitante.
O Desembargador, na decisão, afirmou:
“a limitação da jornada de trabalho e o descanso semanal remunerado são medidas de suma importância, pois refletem no aspecto fisiológico, social e econômico do empregado, e que tais direitos, somados aos demais direitos humanos e fundamentais, formam o denominado trabalho decente”.
Ainda, a decisão colegiada afirmou que é “inegável o dano extrapatrimonial sofrido pelo autor, que durante meses seguidos teve sua jornada extraordinária transformada em ordinária, em tempo muito superior aos limites aceitáveis pela legislação vigente”, e que “a presente situação extrapolou os limites da razoabilidade e do juízo de proporcionalidade, sendo que a mera quitação das horas extras prestadas não elide os danos acarretados ao reclamante, ou seja, não 'compra' a violação aos seus direitos fundamentais, razão pela qual faz jus o obreiro à indenização pleiteada e deferida na origem”.
Assim, o trabalhador quando privado de suas horas de descanso e de seu convívio familiar, de forma habitual, deve ter essas horas suprimidas pagas de forma extra, conforme estabelecido na legislação vigente. Sendo o mínimo para compensar-lhe os impactos emocionais e afetivos junto à sua família.
Marcela Mª Furst Signori Prado
Brasília, 9 de março de 2020
- Artigo publicado em conjunto com a advogada Dra. Tathyana Guitton