A aplicação da norma homogênea no Direito de Família

A aplicação da norma homogênea no Direito de Família

Brasília - 2019

Introdução

O ordenamento jurídico é um conjunto de normas com direitos, garantias e obrigações que regulam as condutas dos indivíduos.

A Constituição do Brasil de 1988 é a lei fundamental e foi elaborada para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. E todas as leis, códigos, medidas provisórias ou decretos, devem ecoar o que está estabelecido na Constituição de 1988 e respeitá-la, para que tenham validade.

A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LIDB, Decreto-Lei nº 4.657/1942, alterado pela Lei nº 12.376/2010, tem como função reger as normas, indicando como interpretá-las e aplicá-las.

O código de processo civil define como tramita um processo cível, comum na Justiça, incluindo prazos, recursos, competências e, tramitação. E para atuar em juízo, é preciso valer-se das regras do processo civil.

Desenvolvimento

O Direito de Família é um ramo do Direito Civil que trata das relações familiares e dos direitos e obrigações delas decorrentes. E as relações familiares envolvem elementos subjetivos que, têm impacto no desenrolar destas relações, como: composição, afeto, dever de cuidar, entre outros. Tais peculiaridades do âmbito privado das relações, acabam se projetando em juízo, gerando certas adaptações procedimentais no direito.

Por este motivo, o Direito de Família evoluiu, se modificando, nos últimos anos, ou décadas. Em decorrência destas subjetividades.

Como descrito no livro Processo e Procedimento – Migalhas de Direito Processual, o processo judicial:

“pode ser caracterizado não como uma relação jurídica, mas como um conjunto de relações jurídicas que se ajustam e se concretizam por meio do procedimento (não necessariamente em contraditório), cuja estrutura revela o encadeamento de atos, cada qual deles guardando sua particular conceituação e função”1.

Para Kelsen2, a situação fática do costume – quando indivíduos em sociedade durante certo tempo agem da mesma forma se repetindo durante determinado tempo – transforma-se numa vontade coletiva e podem ser interpretados como norma válida, se o fato é assumido como produtor de normas, por uma norma superior:

“(…) o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que se dirigem intencionalmente à conduta de outrem não só quando, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas.”

Mudanças legislativas, visando homologar, proteger e respaldar, direitos e garantias não descritos nas normas, advindos da mudança dos comportamentos da sociedade, ocorreram. São vários os exemplos, tais como: o casamento entre pessoas homoafetivas, a adoção unilateral, a guarda compartilhada, a paternidade socioafetiva e a multiparentalidade, entre outras.

Há então, uma materialização ao direito e às normas, do que já existia de fato na sociedade. Isso porque, a aplicação das normas, deve fundar-se no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como disciplina o código de processo civil nos seus artigos e 3º e 8º:

“Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.”

“Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”

Como conceitua Dra. Fernanda Tartuce em seu livro “Processo Civil no Direito de Família”3, as normas que compõem um ordenamento jurídico podem ser divididas em primárias e secundárias, sendo as primárias, as normas materiais e, as secundárias, as normas instrumentais.

Assim, as normas materiais são as que definem os fatos, regulam as relações, e criam direitos. E as normas instrumentais, tem a ver com a forma, sendo o direito processual, ou seja, conjunto de normas e regras, com atenção aos princípios, que devem ser utilizadas para aplicação do direito material.

De modo que, no ordenamento jurídico, a norma geral é destinada a todas as pessoas e aplicada a todas relações jurídicas.

Dra. Fernanda Tartuce4, em seu livro, levanta o questionamento se “é apropriado continuar defendendo a incidência de uma norma processual única para reger os conflitos de todos os ramos de direito material e preconizar sua aplicação homogênea?”

“Destacar o ‘caráter transubstancial do processo’ é aludir à sua vocação para atender a uma grande gama de situações controvertidas com diferentes perfis independentemente das vicissitudes dos conteúdos substanciais por ele veiculados; como o processo tende à generalidade, ‘situações fáticas e grande disparidade podem ser submetidas à mesma disciplina legal e estudadas sob uma mesma perspectiva’”.5

O quê diz o código de processo civil:

“Art. 318. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei.”

Neste mesmo sentido, questiona-se: Uma vez que, a norma geral é destinada a todas as pessoas e, a evolução ao direito de família trouxe alterações legislativas, o quê fazer quando novas situações surgem e precisam ser asseguradas, e as alterações legislativas podem demorar e ter como consequência a preterição de direitos e garantias individuais?

E é neste ponto da transubstancialidade (que se muda completa e essencialmente noutra substância) do processo civil, que entramos muitas vezes nas aplicações de normas subsidiárias bem como nas aplicações de normas por analogia.

Se nem sempre é possível encontrar uma norma aplicável ao caso concreto, deve o juiz valer-se das fontes do Direito, com ampla aplicação principiológica, nunca contrariando a Constituição Federal.

Assim, a LIDB dispõe sobre:

“Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

Trago aqui alguns exemplos de casos concretos de flexibilização da norma:

Recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ, julgou um recurso especial determinando que, acordo de partilha de bens com trânsito em julgado pode ser alterado por vontade das partes. No caso concreto deste julgamento, houve a homologação judicial de um acordo em divórcio, com trânsito em julgado, que definiu que após a separação os imóveis do casal seriam colocados à venda no prazo de seis meses e cada um ficaria com 50% dos valores apurados. Só que, após meses sem vender nenhum dos bens, o casal requereu a homologação de novo acordo, pelo qual caberia um imóvel para a mulher e os demais para o homem.

Entretanto, tanto o juiz a quo tanto quanto o tribunal, indeferiram o pedido, argumentando que, somente se muda decisão judicial com trânsito em julgado, por meio de Ação Anulatória.

Com o recurso para o STJ, a ministra-relatora Dra. Nancy Andrighi6, em seu voto, ressaltou:

“(…) o acórdão recorrido está na contramão dos esforços de desjudicialização dos conflitos, materializando uma ‘injustificável’ invasão do Poder Judiciário na esfera privada das pessoas. (…) A coisa julgada material formada em virtude de acordo celebrado por partes maiores e capazes, versando sobre a partilha de bens imóveis privados e disponíveis e que fora homologado judicialmente por ocasião de divórcio consensual, não impede que haja um novo ajuste consensual sobre o destino dos referidos bens, assentado no princípio da autonomia da vontade e na possibilidade de dissolução do casamento até mesmo na esfera extrajudicial, especialmente diante da demonstrada dificuldade do cumprimento do acordo na forma inicialmente pactuada(…)”.

Neste caso, a flexibilização da norma, vislumbrou os princípios da economia e celeridade processual, beneficiando, inclusive, não somente as partes, mas também o judiciário de maneira geral, que está abarrotado de processos.

Outro exemplo, trata-se de uma decisão de 2016, em que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC7, proferiu um acórdão, deferindo danos morais a uma mulher que entrou com pedido de indenização contra sua irmã, alegando que esta, impediu o seu convívio com sua genitora, antes do falecimento desta.

“Apelação cível. Ação de indenização por danos morais. Relação familiar dissidente das partes, irmãs entre si, em relação à genitora. Elementos análogos à alienação parental em razão do estado de vulnerabilidade e doença da genitora. Ponderação dos deveres, direitos e pressupostos das relações familiares. Utilização arbitrária de abusos análogos a medidas restritivas, sem amparo em decisão judicial. Responsabilidade civil. Pressupostos configurados. Dano moral reconhecido. Recurso desprovido. Incontroverso entre as partes, apenas que a genitora sofria de uma série de problemas de saúde, incluindo a degenerativa doença de Alzheimer. Diante do contexto, é de certa forma compreensível a distorção de percepções entre as partes sobre as vontades da genitora. É que a doença, específica, debilita o enfermo de tal forma que, sabidamente, é comum que este seja facilmente sugestionável ou convencido. Disto, é de se mitigar as acusações mútuas, de que as partes, cada uma, considera-se a legítima defensora dos reais interesses da genitora. Tendo em vista o estado de vulnerabilidade da genitora e a patologia específica, o caso não deixa de se parecer com aquele da alienação parental, ao inverso. Em verdade, o que se observa são medidas, próprias daquelas protetivas do Direito de Família, como interdição, tomadas de forma arbitrária e ao arrepio da Lei e dos ditames que regem as relações familiares. O ato de privar a irmã do contato com a genitora, sponte sua, independentemente de autorização judicial e dadas as circunstâncias do caso, gera dano moral indenizável.” (TJSC, AC Nº 0006690-70.2012.8.24.0005, Relator: Domingos Paludo, Primeira Câmara de Direito Civil, J. 25/08/2016).

O acórdão, dispõe que, há “elementos análogos à alienação parental”. Neste caso, a genitora sofria de uma série de problemas de saúde, incluindo Alzheimer.

Neste caso concreto, vou discriminar como se deu a possibilidade da aplicação por analogia, que é flexibilização da norma na sua ampliação para respaldar e garantir o direito:

A Lei 12.318/10 em seu artigo 2º, conceitua o quê é alienação parental (grifos meus):

“Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.”

Eu grifei as expressões “criança e adolescente” como o objeto e os agentes, como os “genitores ou avós”. Neste caso, a genitora era idosa e sofria de uma série de problemas de saúde, que agravava a sua capacidade de discernimento, de modo que, considerando o seu estado de vulnerabilidade, igual ao da criança e do adolescente, o caso não deixa de se parecer com aquele da alienação parental, só que ao inverso. Aqui, a inversão está presente no objeto sendo a genitora, e, a agente, a filha, contra sua irmã. Sendo neste caso, presente o estado de hipervulnerabilidade, quando há o cruzamento de mais de uma forma de vulnerabilidade, idosa e doente.

No que tange às formas de alienação parental, descritas também no referido artigo 2º, parágrafo único, da Lei 12.318/10, grifo o que facilmente conseguimos identificar no caso concreto citado acima, para aplicação por analogia:

“Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;

II - dificultar o exercício da autoridade parental;

III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;

IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;

V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;

VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;

VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.”

Assim, a aplicação por analogia de norma já existente a caso aparentemente diferente, se dá através das suas similaridades. Vemos aqui objeto, agente e forma:

ALIENAÇÃO PARENTALALIENAÇÃO PARENTAL INVERSA
  • Objeto: criança e adolescente;
  • Agentes: genitores, avós ou qualquer pessoa que tenha a criança ou adolescente sob a sua autoridade.
  • Objeto: genitor (pessoa idosa);
  • Agentes: filhos ou qualquer pessoa que a tenha sob a sua autoridade.
  • Relações Familiares;
  • Atos;
  • Forma;
  • Estado de Vulnerabilidade.

O juiz da causa deve se pautar sempre no princípio da imparcialidade, livre de qualquer vício, com a prerrogativa de decidir um caso concreto conforme livre interpretação, mesmo que não haja forma prescrita em lei, desde que não seja defesa em lei, ou seja, proibido por lei. Não devendo se eximir da decisão por falta de norma, conforme disposto no artigo 140 do Código de Processo Civil:“Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.”

De modo que, havendo pontos comuns, como discriminado acima para aplicação da lei da alienação parental de pessoa idosa, cabe ao juiz estender a aplicação do dispositivo legal à caso não previsto. Verificada, então, a possibilidade da aplicação da norma por analogia.

Conforme disciplina Francesco Ferrara8: “o procedimento por analogia radica no conceito de que os factos de igual natureza devem ter igual regulamentação, e se um de tais factos encontra já no sistema a sua disciplina, esta forma o tipo do qual se deve inferir a disciplina jurídica geral que há de governar os casos afins”.

Conclusão

Desta forma, a flexibilização do direito processual frente a complexas subjetividades advindas do direito material, tem com objetivo, não haver detrimento de direitos frente a falta de normatização.

A evolução do Direito de Família, se baseia, especialmente, no princípio da proteção à família, trazido no artigo 226 da Constituição Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.”

Um direito individual pode ser um direito social do qual não se tem conhecimento, ainda, e, a evolução interpretativa desta norma para diversos casos individuais que levam à alteração legal ampliando para a sociedade a garantia deste direito, é o quê me motiva como jurista, a seguir na luta diária pelos direitos humanos.

Referências

  1. NÓBREGA, Guilherme Pupe e NUNES, Jorge Amaury Maia. Processo e Procedimento – Migalhas de Direito Processual. Ed. Migalhas. 2019.
  2. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Ed. Martins Fontes. 1997.
  3. TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família – Teoria e Prática. Ed. Método. 3ª Edição. 2017.
  4. Site: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%Adcias/Acordo-de-partilha-de-bens-com-tr%C3%A2nsito-em-julgado-pode-ser-alterado-por-vontade-das-partes . Acesso em 24 de maio de 2019.
  5. Site: http://www.ibdfam.org.br/jurisprudencia/5562/Aliena%C3%A7%C3%A3o%20parental%20ao%20inverso.%20Irm%C3%A3s%20x%20genitora%20idosa.%20Indeniza%C3%A7%C3%A3o%20por%20danos%20morais . Acesso em 26 de maio de 2019.
  6. Site: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/pdfs/lacunas-no-direito_59908eab511bf.pdf . Acesso em 29 de maio de 2019.

Marcela Mª Furst Signori Prado
Brasília, 10 de julho de 2020


  • Artigo publicado no livro do IBDFAM/DF: Intervenção Estatal e Comunitária nas Famílias: Limites e Possibilidades, Editora Trampolim Jurídico, junho/2019, págs. 149/160
  • Republicado na revista Síntese Direito de Família, junho/julho 2020, número 120, págs. 76 à 84.